Mulher pode ser drag queen? Sucesso de cantoras nas principais paradas do mundo reacende discussão sobre gênero e expressão artística. Pabllo Vittar e Chappell Roan.
Reprodução/Instagram/Facebook
Em 2024, Chappell Roan foi de nome desconhecido à nova revelação do pop. A cantora americana de 26 anos conquistou fãs e emplacou várias músicas nas paradas. Esse sucesso tem a ver com hits divertidos, mas também vem de suas performances e visuais extravagantes. Kayleigh Rose diz que Chappell Roan não é só seu nome artístico. É seu “projeto drag queen”.
Isso acabou se tornando o centro de um debate nas redes sociais no último mês. Graças ao sucesso de “Alibi”, Pabllo Vittar apareceu nas principais paradas globais da revista “Billboard” e de plataformas como o Spotify. E essas listas já contavam com as músicas de Chappell.
Segundo a “Billboard”, a brasileira foi a primeira drag queen a aparecer nas paradas desde RuPaul. Mas se Chappell reivindicasse esse lugar, ela teria esse direito? Muitos fãs de pop fizeram essa pergunta nas redes sociais.
Afinal, Pabllo é uma pessoa de gênero fluido, gay, que “se veste de mulher” em sua persona artística. Já a americana é uma mulher cis (nascida mulher) lésbica, que diz que “faz drag” quando sobe aos palcos. Será que as duas podem se dizer drag queens?
Para entender esse debate, é preciso voltar a uma discussão já antiga na comunidade: o que, de fato, define uma drag?
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Arte vem da ‘montação’
Chappell Roan se apresenta Tiny Desk concert
Reprodução/YouTube/TinyDesk
Muitos ligam drag ao visual exacerbado e extravagante, que brinca com a noção de gênero. Para Douglas Ostruca, transformista, pesquisador e editor do projeto Grafia Drag, isso é comum, mas não é obrigatório.
Douglas acredita que o elemento central da arte drag é a “montação”: o processo de aplicar maquiagem, roupas e elementos para assumir outra persona.
“Entendo a montação como um conjunto de elementos heterogêneos, entre eles a maquiagem, a peruca, o figurino, os acessórios, às vezes enchimentos. Esses são elementos mais básicos, mas nem todas precisam ter esses elementos”.
Portanto, uma característica da montação (que a difere de uma arrumação convencional) é que envolve “tempo de trabalho”. “Além do tempo de pensar a montação, tem um tempo de produção, e envolve criatividade”.
Algumas montações são hiperbólicas e criam personas fantasiosas. Outras nem tanto: hoje, a própria Pabllo Vittar se veste de uma forma mais casual, com roupas mais cotidianas. Independente disso, Douglas diz que não é possível afirmar que uma estética seja drag e outra não.
RuPaul e Pabllo Vittar
Reprodução/Twitter; Reprodução/Instagram/Pabllo Vittar
Quem pode ser drag?
Em 2009, o dicionário Houaiss definiu “drag queen” como um “homem que se veste com roupas extravagantes de mulher e imita voz e trejeitos tipificadamente femininos, apresentando-se como artista em shows”.
“Essa é a definição mais comum que a gente tem, e é uma compreensão que ocorre até entre as pessoas da própria cena. Eu discordo disso absolutamente”, afirma Ostruca.
Nas pesquisas de Douglas, a figura da drag não se reduz a “uma montação de feminilidade ou masculinidade”. E hoje em dia, a arte abrange várias expressões, fugindo da lógica de representar um gênero que não seria o seu.
“Existem até ‘drag demônias’, que ‘explodem’ com a binariedade. Existem as ‘drag monstras’, que levam para o universo da fantasia. E isso não é novo”.
As mulheres na cena
Entre as expressões drag mais conhecidas, existem os “drag kings”, nome atribuído às pessoas (muitas vezes mulheres) que se vestem de homens, também com “exageros”. Drag kings já são mais consolidados, com origens que remontam ao século XVII.
Landon Cider, famoso drag king americano
Reprodução/Instagram
Mas a ideia de mulheres assumindo personas femininas, se dizendo “drag”, não é tão bem recebida por muitos.
Essa é uma discussão controversa que mudou e segue mudando ao longo do tempo. A própria RuPaul, veterana que apresenta o famoso programa “RuPaul’s Drag Race”, foi notoriamente contrária a drag queens que não fossem homens gays. Hoje, o reality recebe participantes de diferentes gêneros e sexualidades, incluindo até homens héteros.
Douglas acredita que não existe um gênero específico (e não é preciso “performar” outro gênero) para ser considerado drag.
“Mulher cis pode, sim, fazer drag. Dizer que uma mulher cis não pode fazer drag é machismo, às vezes até misoginia. Eu leio isso como um absurdo.”
Afinal, Chappell Roan é drag?
A cantora americana Chappell Roan
Divulgação
Considerando a montação como um aspecto principal, Chappell se encaixaria tranquilamente na definição de drag. Na verdade, a cantora conta que foi graças a isso que uma “queen”, chamada Crayola, viu esse lado nela.
“[Crayola] me viu me arrumando e disse ‘Amor, você não está só passando maquiagem. Você é uma drag queen’. E isso mudou muita coisa, e eu levei isso como uma identidade. Foi muito libertador pensar em Chappell Roan como meu projeto drag”, contou no podcast “Q with Tom Power”.
Claro, maquiagens exacerbadas e visuais hiperbólicos não são exclusivos ao universo drag: são, inclusive, parte da cultura pop. Artistas como Lady Gaga, David Bowie e vários outros cantores já traziam uma espécie de “montação” para a sua performance.
Para Ostruca, a diferença está justamente na forma que os artistas se afirmam. “Chappell tem a sua montação. E se ela se afirmar como drag queen, ela é uma drag queen. Não legitimar isso pode ser um argumento machista”.
“E tem as próprias questões dela, como a questão de como mulheres são vistas quando fazem drag. No caso dela e da Pabllo, são atravessamentos distintos. Uma forma de resolver isso é que a Chappell poderia ser a primeira mulher cis drag queen a chegar nas paradas. Não cabe deslegitimar a posição dela por isso”.
“Drag é um convite à experimentação. Qualquer pessoa pode fazer”, completa.
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