Família que fugiu da Venezuela volta a sonhar com futuro no Brasil e cria rede de ajuda para migrantes

Fome e falta de perspectiva impulsionaram migração dois anos atrás, e agora, estabelecidos em Campinas (SP), Miguel e Diane falam com brilho nos olhos dos filhos e do sonho da casa própria. Funcionário da Azul, soldador usa benefício junto a companhia aérea para dar passagem a parentes e conhecidos que fazem a mesma travessia. Diane e Miguel, venezuelanos que migraram para o Brasil há dois anos e hoje trabalham na Azul, em Campinas (SP), e sonham em conquistar uma casa própria
Fernando Evans/g1
A crise que assola a Venezuela há anos, exposta em sua face mais cruel pela fome, provoca o exôdo da população que tem no Brasil um dos principais destinos. A mudança para um país com cultura e idioma tão diferentes não foi ou é fácil, mas passados dois anos da travessia, uma família estabelecida em Campinas (SP) comemora o fato de poder voltar a sonhar e planejar um futuro para os filhos. Uma meta: conquistar a casa própria.
“Vamos correr atrás do nosso sonho, seguir para frente com a nossa família. Vamos dar o melhor da gente”, afirma Miguel Garcia, de 44 anos.
Mas ao olhar para frente, em meio a planos que fazem os olhos brilharem, Miguel e a esposa Diane, de 46 anos, não se esquecem do passado, e nem daqueles que ficaram e precisam de ajuda quando decidem seguir o mesmo caminho que eles.
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Por isso, criaram uma rede de ajuda, que além de teto e alimentação, inclui até passagem aérea, sem qualquer custo.
Os dois trabalham na Azul, companhia aérea com base de suas operações o Aeroporto Internacional de Viracopos. Um dos benefícios aos funcionários inclui a emissão de até oito passagens por ano em território nacional por uma tarifa de R$ 50, e Miguel usa esse direito para ajudar migrantes a saírem de Boa Vista (RR) com destino a Campinas (SP), onde mora.
A ajuda, que pode durar meses até a obtenção de documentos e de um emprego, é voluntária, o único pagamento exigido pelo soldador é que o bem seja multiplicado. Miguel conta que já abrigou três conhecidos vindos da Venezuela.
“Não precisa pagar nada. A única coisa que peço é que ajude outra pessoa. Não preciso que me entregue dinheiro. Preciso apenas da bênção de Deus, mais nada”, diz.
Dificuldades na Venezuela
Para exemplificar o drama de quem ficou para trás, o casal conta das dificuldades financeiras que parentes e amigos passam – eles conseguem mandar um pouco de recursos para os pais.
Miguel conta que depois de trabalhar uma vida inteira, 50 anos na área siderúrgica, o que o pai recebe de aposentadoria não consegue comprar um frango. O pagamento seria equivalente a 3 dólares, o equivalente a R$ 14,70.
“Como se vive assim? Aqui eu pego meu salário e falo: ‘obrigado, Senhor, obrigado’. Eu vou ao mercado, levo comida para minha casa, meus filhos estão comendo, coisas que lá não fazíamos. Graças a Deus”, enfatiza Diane.
A jornada
Miguel é de Ciudad Bolívar, capital do estado de Bolívar, que fica a 600 km da capital Caracas. O serralheiro lembra que a região concentra um parque industrial vasto, mas que o trabalho, que antes era proeminente, aos poucos foi sendo corroído pela inflação.
Por mais que se esforçassem, ele e Diane, que trabalhava como professora, começaram a sofrer as consequências de um momento tenebroso. A fome se instalou, e por muitas vezes deixaram de comer para alimentar os filhos, um adolescente atualmente com 17 anos, e uma menina com 13.
Miguel Garcia com a esposa Diane e os filhos em Campinas (SP): migrantes venezuelanos voltam a sorrir e planejam futuro no Brasil
Arquivo pessoal
Com o dinheiro valendo cada vez menos, Miguel tentou uma primeira mudança, buscando ocupação nas minas de ouro, mas o ambiente cercado de violência, com homens armados, não se mostrava promissor.
“Ali comia um pouco melhor, só que não havia oportunidade para meus filhos. Aquelas pessoas com fuzil, pistolas, eles olhavam. Qual era o futuro que eu ia deixar para eles?”, indaga.
Nesse momento, deixar a Venezuela não era uma simples opção. Era a escolha necessária para voltar a viver, e não apenas sobreviver, e buscar um futuro para os filhos.
“É uma decisão complicada. Pensamos: ‘qual o país mais próximo? É o Brasil. Bora'”, conta Miguel, já misturando um portunhol com algumas gírias adquiridas em solo brasileiro.
Embora a escolha se deu por proximidade, essa é uma realidade distante da grande maioria das pessoas. É difícil imaginar fazer uma travessia com filhos, uma irmã e neta por meio de uma área indígena, no mato, uma vez que a fronteira estava fechada.
O destino foi Pacaraima, no estado de Roraima, onde foram necessários três dias para regularizar a documentação, e por onde viveram os primeiros meses no Brasil até seguirem para Campinas (SP), distante 4,7 mil quilômetros, e onde um primo de Miguel já estava.
Na ocasião, chegaram a morar em um abrigo para refugiados até conseguirem trabalho e, depois, um lugar para morar no Jardim Fernanda, onde estão até hoje.
Trabalho
Os primeiros trabalhos no Brasil foram na varrição de ruas, mas Diane garante que a Azul, companhia em que hoje atuam, surgiu no horizonte logo que chegaram na cidade.
“Quando eu pisei aqui, que cheguei pelo ônibus, eu vi isso [hangar], eu disse para meu marido: tenho a esperança de entrar e trabalhar. Eu declarei isso, eu vou trabalhar aí”, contou Diane.
E o destino logo a tratou de colocar lá dentro da companhia. Primeiro, como funcionária de limpeza de uma empresa terceirizada. Foi dessa forma, inclusive, que ela soube da oportunidades e conseguiu o emprego de soldador para Miguel. Sua contratação como “tripulante” da Azul veio depois.
Miguel e Diane, migrantes venezuelanos que trabalham no hangar da Azul, em Campinas (SP)
Fernando Evans/g1
Praia e ‘medo de avião’
Um fato curioso é que apesar de trabalharem em uma companhia aérea, o casal ainda não usou o benefício para a família, apenas para ajudar outras pessoas. Eles trabalham para juntar dinheiro e, além do sonho da casa, quem sabe conhecer, enfim, uma praia brasileira.
“O banho de praia falta. Para uma viagem você tem que ter pelo menos algum dinheiro, né?”, conta Miguel, sorrindo.
Mas nada que não possa ser resolvido até mesmo sem precisar sair de terra firme. O soldador que já viajou para alguns destinos da Azul a trabalho, conta que não é muito fã de voar, não.
“Gosto de ficar aqui na terra (risos). Mas eu sei que é algo seguro, a manutenção que se dá, são todos muito profissionais. Eu confio no trabalho”, avisa.
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