Desapropriados pelo ‘progresso’, povos originários e trabalhadores da construção civil foram obrigados a morar em favelas de Belo Horizonte, enquanto pessoas mais ricas passaram a morar na região central da cidade. Desaterro nas margens do Ribeirão Arrudas – que cruza Belo Horizonte -, entre 7 de setembro de 1922 e 7 de setembro de 1926.
Acervo Museu Histórico Abílio Barreto/ Fundação Municipal de Cultura
Belo Horizonte completa nesta terça-feira (12) 126 anos e tem, em sua origem, o apagamento da história dos povos originários e desapropriações de moradores pobres, cada vez mais empurrados para a periferia da nova capital de Minas Gerais.
As pedras que construíram a nova capital do estado (antes de Belo Horizonte, a capital de Minas Gerais era Ouro Preto), por exemplo, saíram da favela mais antiga da cidade.
Apesar do título histórico, muito da história da Pedreira Prado Lopes (PPL) se perdeu ou foi esquecida enquanto o Brasil via o Centro de Belo Horizonte nascer.
Curral del-Rei
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O antigo Arraial de Curral del-Rei, fundado em 1707, precisou ser destruído para que a capital mineira nascesse, – mais de cem anos depois – em 1897. Nessas demolições e reconstruções, pouco restou das histórias dos moradores que viviam aqui antes da chegada do “progresso”, representado por um projeto de cidade moderna, inspirada no ideal positivista.
A arquiteta e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Priscila Musa, coautora da tese “Quem vê cara não vê ancestralidade: Arquivos fotográficos e memórias insurgentes de Belo Horizonte”, precisou recorrer a outras fontes para abastecer o acervo de imagens que contassem a história da cidade para além do registro elitista.
Priscila analisou mais de 500 filmes e mais de mil imagens com a ajuda das também pesquisadoras Júlia Ferreira da Silva e Maria Beatriz Coelho, além de Valéria Borges, moradora da PPL há mais de 58 anos, e da Rainha Conga Isabel Casimira. (veja a história da PPL mais abaixo)
“Pesquisei em oito arquivos públicos, um deles o nacional e em dois museus. Não encontrei praticamente nada sobre pessoas negra, por exemplo, então resolvi buscar fotografias guardadas. Achei pouquíssima coisa sobre as periferias [de Belo Horizonte]”, relembrou Priscila.
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População negra desapropriada
Segundo Priscila Musa, quando Belo Horizonte foi planejada para ocupar o antigo Curral, os povos negros não tiveram espaço no Centro e em suas imediações, sendo empurrados para regiões mais distantes da cidade, ou até mesmo fora dela. Nessa jornada, a população negra se viu obrigada a ocupar os espaços menos acessíveis da nova capital.
O doutor em história e professor da UFMG, Tarcísio Botelho, explicou que durante a demolição do Curral del-Rei, centenas de famílias foram desapropriadas. No local, viviam ex-escravizados, negros nascidos livres e brancos de classe média. Eles foram obrigadas a dar lugar a avenidas largas, como a do Contorno, que “contorna” a cidade e que, na época, era o limite do município.
A avenida passou a dividir o espaço da elite e o espaço da classe trabalhadora. Dentro da Contorno, as famílias ricas e brancas se acomodavam em casarões inspirados na “belle époque” francesa, enquanto que parte da população negra, que morava na região, foi obrigada a sair de suas casas para que a construção de Belo Horizonte fosse realizada.
“Nesse terreno que foi desapropriado, abriram-se ruas, e havia um modelo de casa estabelecido. Para que essas pessoas pudessem ter uma casa ali, tinham que cumprir os requisitos, e era um custo muito alto, a maioria dos moradores não tinham condições de arcar. De maneira geral, quem não tinha condição de morar ali teve que ir para fora”, afirmou Tarcísio.
Mapa da desigualdade
Essa mudança étnica que a capital sofreu reflete nos dias de hoje. De acordo com o a última edição do Mapa das Desigualdades de Belo Horizonte (2021), os bairros da capital com maior proporção da população negra estão fora da Região Centro-Sul, delimitada pela Avenida do Contorno.
Veja abaixo
São Francisco das Chagas, na Região Noroeste, com 94% da população autodeclarada preta ou parda
Conjunto Providência, na Região Norte, com 87% da população autodeclarada preta ou parda
Chácara Leonina, na Região Oeste, com 87% da população autodeclarada preta ou parda
Mapa da população negra de BH
Mapa das Desigualdades, 2021/Nossa BH
Enquanto isso, se considerarmos todos os moradores dos bairros Vila Paris, Sion e Belvedere, localizados na Região Centro-Sul, o número de pessoas que se autodeclaram pretos ou pardos não chega a 30%.
“Apenas 2% da população negra vive no Centro da cidade”, disse a professora relembrando os números do Censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2010. Podemos falar de uma exclusão histórica nesse sistema de cidade”, afirmou.
Apagamento histórico
Ponto de Abertura da Rua Pedro Lessa, na Pedreira Prado Lopes, em 1940
Acervo Museu Histórico Abílio Barreto/ Fundação Municipal de Cultura
Para resgatar a história que quase foi apagada pela nova capital, as pesquisadoras da UFMG contaram com uma ajuda preciosa, o acervo de fotografias de Valéria Borges. Apaixonada pela favela onde foi criada, a Pedreira Prado Lopes, ela decidiu reunir esses registros ainda adolescente.
Valéria pedia fotografias aos moradores mais antigos e até mesmo era responsável pelas fotos.
“Desde que me entendia por gente escutava minha mãe e avó falando que, um dia, iriam acabar com a favela. Na verdade, eu tinha medo de ninguém saber da história da Pedreira. Até que um dia ganhei uma máquina fotográfica”, contou.
Trabalhadores que construíram a cidade
Construção de rede de esgoto na Rua Itapecerica, no Bairro Lagoinha, em 1929.
Museu Histórico Abílio Barreto/Fundação Municipal de Cultura
De acordo com o professor Tarcísio Botelho, os primeiros moradores da PPL foram trabalhadores da construção civil, que vieram do interior de Minas Gerais em meados dos anos 1900 em busca de melhores condições de vida. E foram esses trabalhadores – e também novos favelados – que ajudaram a erguer Belo Horizonte.
Entre esses trabalhadores estava a avó de Valéria Borges, a Maria do Carmo, apelidada de Maria Bonita. Ela ajudou a construir as casas que ficam dentro da Avenida do Contorno (limite original da cidade planejada, onde morava a elite).
“Faltam registros, e a história da PPL vem sendo apagada. Tudo que remete a coisa boa, querem apagar, inclusive o próprio nome favela. Essas histórias não podem morrer. A gente que mora em favela, se a gente não souber o que ela é, eles apagam nossa história. Eu amo essa favela demais. Apesar de todo o sofrimento, é o lugar que me formou” , contou Valéria.
Construção de rede de esgoto na Rua Itapecerica no Bairro Lagoinha, em 1929.
Acervo Museu Histórico Abílio Barreto/ Fundação Municipal de Cultura
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