Cortes na educação argentina, aumento de exigências e proposta para extinguir gratuidade a alunos estrangeiros em universidades públicas provocam incerteza sobre destino de milhares de brasileiros que estudam no país.
Nos últimos anos, tradições universitárias do Brasil, como atléticas e cervejadas, se expandiram pela Argentina na mesma velocidade que o número de estudantes brasileiros, a grande maioria buscando um diploma de medicina. A gratuidade da universidade pública e a facilidade no ingresso foram nos últimos anos grandes atrativos para os alunos brasileiros, mas a solução que muitos encontraram para obter o diploma entrou na mira do governo do presidente ultraliberal Javier Milei neste ano.
Em meio aos planos de cortes de gastos, as verbas para as universidades são alvo de polêmicas e disputas. No começo do mês, Milei vetou uma lei para o financiamento universitário, provocando manifestações e uma série de paralisações nas instituições de ensino. O projeto, que havia sido aprovado pelo Congresso, previa mais verbas para a educação e aumento de salários de docentes. Setores universitários alegam que o corte de gastos impede o pleno funcionamento das instituições.
A postura contou com forte rejeição popular e política, já que as universidades públicas, de onde saíram cinco vencedores do prêmio Nobel, são vistas como um orgulho nacional. Segundo pesquisa da consultoria Zuban Córdoba y Asociados, 59,3% dos entrevistados questionaram o veto de Milei à lei que promovia a ampliação do orçamento universitário.
Neste cenário, a proposta de cobrar de alunos estrangeiros para aumentar a arrecadação das instituições vem sendo defendida por alguns setores. “Aqueles que vêm de outras partes para estudar em nosso país são pessoas que não pagaram um único imposto aqui durante toda a vida. Apoiamos a educação, a saúde, a segurança e a justiça, me parece razoável que quem utiliza estes serviços e não contribuiu, pague alguma coisa”, declarou o presidente da Câmara dos Deputados da Argentina, Martín Menem, sobre o tema.
No centro da polêmica, está a Medicina. Atualmente, cerca de 34% dos estudantes no curso no país são estrangeiros, um número próximo de 37 mil pessoas, com mais de 20 mil brasileiros. Normalmente, para um brasileiro estudar em uma universidade pública na Argentina a única exigência além dos trâmites burocráticos para se fixar no país é a comprovação de um conhecimento de espanhol, o que estimulou muitos alunos nos últimos anos.
Além de não exigir um disputado vestibular para ingresso nas universidades públicas como no Brasil, há a possibilidade de economizar diante de mensalidades que chegam aos milhares de reais nas instituições privadas do país.
Diploma mais caro e mais difícil
Por sua vez, em 2024, o cenário favorável vem sofrendo algumas alterações. Ao longo do ano, dezenas de brasileiros foram barrados ao tentar entrar na Argentina por conta de alterações nas exigências de visto.
Até então, era comum que o procedimento de estudantes solicitarem o visto de permanência e a residência fixa fosse feito após o ingresso no território argentino. Já neste ano, ao seguir o mesmo trâmite, alguns dos que tentaram entrar no país vizinho ainda sem tal documentação foram tratados como “falsos turistas” e mandados de volta ao Brasil.
Além disso, a alta no custo de vida, com destaque para avanço no preço dos aluguéis, vem representeando uma dificuldade extra. Nos últimos anos, apesar da inflação argentina galopante, o real teve forte valorização ante o peso argentino, o que manteve o país atrativo para muitos brasileiros. No entanto, nos últimos meses a moeda local se estabilizou, tornando as despesas mais caras em reais.
“Vi muitos colegas voltando ao Brasil, ainda que estivesse indo bem na universidade, porque não conseguiram custear a vida aqui na Argentina”, afirma Dhéo Carvalho, estudante brasileiro do quinto período da Universidade de Buenos Aires (UBA). Na sua visão, “com certeza” a aplicação de cobranças a estrangeiros reduziria ainda mais o fluxo de brasileiros estudando na Argentina.
“Além de brasileiros, sou colega de pessoas da Colômbia, Equador, Chile, Bolívia e outras nacionalidades da região. Todos eles mostram preocupação caso essa política chegue a ser implementada”, afirma.
O dia a dia nas universidades já vem sendo afetado diante do quadro de incertezas pelo financiamento. “Só no último mês tive três provas que tiveram de mudar de data por greve. Tive três aulas canceladas e duas ao ar livre”, uma forma comum de protesto na Argentina, conta Carvalho.
“Parasitas do Estado”
Muitos estudantes de outros países relatam que comentários negativos sobre sua frequência nas universidades, e aqueles que os culpam pelos problemas econômicos do país, avançaram nos últimos tempos. “Não é difícil escutar que somos parasitas do Estado ou que estamos nos aproveitando das condições do país”, afirma Carvalho.
Há poucas certezas sobre o real impacto da eventual cobrança de estrangeiros, e de que forma se daria sua aplicação. Atualmente, 4,4% dos estudantes universitários argentinos são estrangeiros. No caso da proposta atual mais avançada do governo, aqueles sem residência permanente no país seriam afetados.
“Na Argentina, para estudar é necessário ter residência, ou seja, são pessoas do exterior que conseguiram concluir o processo”, aponta Juan Manuel Álvarez Echagüe, professor de Finanças Públicas e Direito Tributário da Faculdade de Direito da UBA. Ele lembra ainda que não há nenhum estudo até o momento que indique qual seria o real impacto econômico na arrecadação de impostos da cobrança de universidades públicas.
Por outro lado, ele não descarta que em um “país onde hoje prevalece um discurso xenófobo” possa avançar a cobrança das mensalidades para aqueles que não nasceram na Argentina. “Legalmente poderia ser viável, embora fosse contra uma longa tradição”, avalia.
Falta de retorno?
Outra questão que ganhou força recentemente foi o questionamento do número de estrangeiros que voltam a seus países depois de concluir o curso de Medicina, o que não geraria contribuição à Argentina. Muitos brasileiros apontam que há interesse em continuar no país após a graduação, mas indicam que os baixos salários comparativos para a função são um impeditivo.
Um levantamento da consultoria Javier Miglino y Asociados mostrou que, na média, um médico no Brasil recebe anualmente US$ 47.000, ante US$ 5.280 da Argentina, valor que fica abaixo até de países como Bangladesh, com US$ 7.084.
O brasileiro Alberto Solé chegou à Argentina em 2008, onde cursou Medicina em uma universidade privada. Atualmente, ele atua como médico especialista no país, mas indica que foi uma exceção em seu curso. “Éramos 97 brasileiros, destes, dez se formaram aqui, dos quais sou o único que continuou na Argentina. A grande maioria voltou logo depois” para o Brasil, conta.
Segundo ele, os comentários questionando a contribuição dos estrangeiros ao país são mais recentes. “Quem conheço que fez a faculdade pública, nunca teve este problema. Na verdade, era visto como uma forma de ascensão social”, incluindo para as segundas gerações de imigrantes, aponta.
Uma ideia ventilada é a de que estrangeiros possam ser obrigados a trabalhar no país por algum período para retribuir a formação. Álvarez questiona o projeto: “Não vejo como viável reter, sem o seu consentimento, alguém no nosso país, mesmo que o fizesse assinar um compromisso prévio, não estaria de acordo com a lei”.
“É verdade que muitos saem do país após se formarem, mas, para obtê-lo, tiveram que fazer consultas médicas com assistência gratuita aos pacientes argentinos”, conclui.
Confira mais reportagens como esta na DW Brasil, parceira do Metrópoles.