Desmatamento do bioma, impulsionado pela expansão agrícola, aumenta em ritmo preocupante desde 2014. Inpe lançou sistema de alerta para acompanhar a degradação. Cegonhas Jaburu pousam em ninho próximo a área queimada por incêndios no Pantanal, no parque Encontro das Águas, em Poconé (MT), em foto de 17 de novembro de 2023.
AP Photo/Andre Penner
O Pantanal, uma das maiores áreas úmidas contínuas da Terra, enfrentou uma temporada de incêndios devastadora entre 2019 e 2021 que deixou marcas profundas: quilômetros de vegetação nativa destruídos e uma perda significativa da sua biodiversidade regional.
E apesar da recente diminuição do acumulado de focos incêndios nos últimos anos (2021 e 2022), especialistas ouvidos pelo g1 alertam que o desmatamento na região – um fenômeno associado às queimadas – está aumentando novamente. E a perspectiva para os próximos meses não é das melhores.
Isso porque junho mal começou e até a última sexta-feira (14), 733 focos de queimadas foram registrados em todo o bioma, o maior número de focos para o mês em toda a série histórica do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
“Pela primeira vez estamos com o Pantanal completamente seco no primeiro semestre. O Ibama já contratou mais de 2 mil brigadistas para atuar em todo o país, com foco inicial no Pantanal e na Amazônia, e vamos fazer tudo o que for necessário. As crises climáticas são eventos cada vez mais extremos”, afirmou o presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, em nota.
📊Entenda o cenário
ÁREAS ALAGADAS: Historicamente, o Pantanal vem enfrentando uma redução significativa de áreas de rios, lagos e campos cobertos d’água, perdendo em média 29% de sua superfície de alagada nos últimos 30 anos.
CAUSA E CONSEQUÊNCIA: Segundo especialistas, a diminuição desses terrenos encharcados e cursos d’água está diretamente ligada às queimadas, já que menos água facilita a propagação de incêndios florestais.
PROBLEMA CONJUNTO: E quais são as principais causas dessa redução? O crescente desmatamento no Cerrado e a degradação das nascentes e rios que alimentam o Pantanal são apontados como fatores-chave.
DESMATAMENTO: Como desmatamento e queimadas também são práticas associadas para criar pastagens, a supressão de vegetação no Pantanal tem aumentado num ritmo preocupante desde 2014. Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram inclusive que de lá pra cá a devastação mais que dobrou.
NOVO SISTEMA: Por causa desse aumento, o próprio Inpe decidiu lançar um sistema de detecção de desmatamento em tempo real para bioma. O novo monitoramento teve início em 1º de agosto de 2023.
MUNDO MAIS QUENTE: Para completar, as mudanças climáticas estão exacerbando todos esses problemas, com previsões de aumento de temperatura que podem chegar a 5 ou 7 graus Celsius no Pantanal, tornando o quadro ainda mais desafiador.
“A tendência atual do desmatamento no bioma é de aumento”, diz Daniel Silva, especialista de conservação do WWF-Brasil.
Redução de recursos hídricos
Não é à toa que o Pantanal é conhecido como a maior planície tropical inundável do mundo, com uma área que ultrapassa os 150 mil km² em território brasileiro.
Sua vegetação é uma combinação de espécies migradas do Cerrado, da Amazônia, do Chaco e da Mata Atlântica, rodeada por vastas lagoas que abrigam uma grande diversidade de animais, de aves a jacarés que dependem de suas águas.
Contudo, nas últimas décadas, o que mais se observa na região é uma transformação drástica no mapa das áreas alagadas desse bioma.
Segundo análises de imagens de satélite entre 1985 e 2022 feitas pelo Mapbiomas, uma iniciativa do Observatório do Clima para mapear anualmente a cobertura e uso da terra no Brasil, tivemos uma redução significativa na superfície de água no Pantanal brasileiro nos anos extremos dos picos de cheia e de seca:
Para se ter ideia, entre os anos de pico de cheia, houve uma diminuição de 29% na área coberta por água, passando de 7,2 milhões de hectares em 1988 para 5,1 milhões de hectares em 2018.
Já nos anos extremos de pico de seca, essa redução foi ainda mais drástica, atingindo 66%, indo de 4,7 milhões de hectares em 1986 para 1,6 milhões de hectares em 2021(veja gráfico abaixo).
“Isso está diretamente relacionado às queimadas, pois quanto menos água há, menor é o período de inundação no Pantanal. E isso facilita a propagação de incêndios florestais, já que quanto mais seco, mais fácil se espalhem os focos de incêndios. É uma bola de neve, é um efeito em cadeia”, diz Gustavo Figueirôa, biólogo e diretor de Comunicação e Engajamento do Instituto SOS Pantanal.
Aumento nas queimadas
Ainda de acordo com os dados do Mapbiomas, o Pantanal foi o bioma brasileiro mais afetado pelas queimadas nas últimas três décadas e meia.
Cerca de 57% de sua extensão, equivalente a 86.403 km², foi atingida pelo fogo pelo menos uma vez nesse período.
E as áreas de vegetação campestre e savanas foram as mais prejudicadas, respondendo por mais de 75% das áreas queimadas.
Em 2020, ano de grandes incêndios no bioma, quase 2,3 milhões de hectares foram devastados pelo fogo. Desde 1985, esse valor só foi menor do que a área queimada em 1999, totalizando 2,5 milhões de hectares (veja gráfico abaixo).
E agora a preocupação de especialistas é com a taxa de queimadas do bioma. Junho mal começou e, até a última sexta-feira (14), 733 focos de queimadas foram registrados em todo o bioma, o maior número de focos para o mês em toda a série histórica do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Fora isso, no cenário mais amplo, quando comparamos o acumulado de focos ativos detectados no Pantanal, também podemos ver que 2024 já está prestes de bater todo o total de 2022, com 1.632 focos (veja gráficos abaixo).
Quando comparamos outros biomas do país, os números também mostram um cenário de alta – embora menor. Na Amazônia, por exemplo, com 8.977 focos, o primeiro quadrimestre de 2024 registrou a taxa mais alta de queimadas desde 2016. Naquele ano, o bioma teve um recorde de 9.315 focos entre janeiro e abril.
Já no Cerrado, que vem tendo altas taxas de desmatamento desde o ano passado, o primeiro quadrimestre de 2024 registrou a taxa mais alta do bioma de toda série histórica do Inpe, que começou em 1998. Somente de janeiro a abril deste ano o bioma teve 4.575 focos.
Figueirôa explica ainda que a degradação das nascentes e dos rios provenientes do Cerrado, mais especificamente da Bacia Hidrográfica do Alto Paraguai (BAP), que alimenta todo o Pantanal, também vem afetando diretamente o bioma.
Isso porque o Pantanal depende significativamente da água que provém desses rios, uma vez que a quantidade de chuva que cai dentro do bioma é bastante limitada durante os meses de maio a outubro – época de estiagem.
“Com a degradação do Cerrado no entorno do Pantanal e também a instalação de pequenas centrais elétricas que barram fluxos de rios, estamos vendo diminuir drasticamente o tanto de água que está descendo para o bioma e causando esses problemas relacionados à seca, como o fogo”, acrescenta o especialista.
O desmatamento pantaneiro
No Pantanal, onde a vegetação não é predominantemente florestal como na nossa Amazônia, o termo “desmatamento” é muitas vezes substituído por “supressão de vegetação”, pois assim engloba a remoção de gramíneas, arbustos e árvores típicas do bioma.
E esta prática, frequentemente ligada ao estabelecimento de pastagens, tem aumentado alarmantemente nos últimos anos, seguindo a tendência do avanço da fronteira agrícola e pecuária na região.
Área devastada por incêndios no Pantanal, no parque Encontro das Águas, em Poconé (MT), em foto de 17 de novembro de 2023.
AP Photo/Andre Penner
Comparativamente a outros biomas brasileiros, o desmatamento no Pantanal tem uma trajetória marcada por altos e baixos.
Entre 2001 e 2014, os dados oficiais do Inpe feitos pelo Programa de Monitoramento do Desmatamento por Satélite (PRODES) apontaram uma redução significativa, de mais de 60% do seu desmatamento anual, caindo de 1.000 km² para 370 km².
No entanto, desde 2014, o que vem sendo observado é um aumento expressivo nessa taxa, ultrapassando os 800 km² por ano (veja gráfico abaixo).
A conversão da vegetação nativa para pastagem é a principal causa da destruição no Pantanal, e observamos uma aceleração desta conversão nos últimos anos.
Novo sistema de monitoramento
Para contornar essa tendência crescente, em agosto do ano passado o Inpe decidiu lançar o Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter) do Pantanal, um monitoramento via satélite da supressão e degradação da vegetação pantaneira que tem como objetivo auxiliar a elaboração de políticas públicas contra o desmate de forma mais célere.
O serviço é baseado nas iniciativas de sucesso que são o Deter Cerrado e Amazônia, que monitoram, como o próprio nome diz, quase em tempo real o desmatamento e alterações da cobertura florestal nesses biomas, facilitando assim uma rápida articulação interministerial e entre órgãos governamentais para implementar medidas eficazes de proteção ambiental e combate à degradação.
O sistema produz sinais diários de alteração na cobertura florestal para áreas maiores que 3 hectares (0,03 km²), tanto para áreas totalmente desmatadas como para aquelas em processo de degradação florestal (exploração de madeira, mineração, queimadas e outras).
Diferente do Prodes, porém, o Deter não é o dado oficial de desmatamento, mas alerta sobre onde o problema está acontecendo.
“O que eu espero é que esse dado permita àqueles que tomam as decisões encontrar esse ponto de equilíbrio, e que os responsáveis pela produção compreendam onde estão causando impacto. Nesta região, o impacto é muito alto. Vamos tentar preservar mais. Quem está encarregado de controlar o desmatamento precisa saber onde agir”, diz Claudio Almeida, coordenador do Programa de Monitoramento de Biomas Brasileiros do INPE.
A plataforma do Deter Pantanal ainda está sendo desenvolvida e a previsão do Inpe é de que fique pronta em alguns meses. Porém, desde que começou a monitorar o bioma, o instituto disponibiliza os dados brutos de desmatamento mensal ao público.
E no gráfico abaixo é possível ver que desde março os números estão aumentando.
“Os dados do Deter Pantanal mostram que o cenário para o futuro não é otimista. A tendência atual do desmatamento no bioma é de aumento”, alerta Silva.
Além de abastecer esses dados mensais, atualmente, o Inpe também vem divulgando por meio desse novo sistema a lista mensal dos 10 municípios com maiores áreas de desmatamento no Bioma.
E Corumbá, a maior cidade de Mato Grosso do Sul, que inclui 60% do Pantanal do estado e 37% de todo o Pantanal brasileiro, vem figurando no topo desde ranking desde então.
Nas fotos abaixo, que mostram exemplos de áreas alertadas como supressão de vegetação no município, é evidente a razão pela qual isso ocorre.
As fotos da direita, que mostram a remoção, são mais recente, do final de 2023, quando o Deter Pantanal já estava em funcionamento. Já a foto da área natural é de cerca de um ano antes e serve apenas para você ter uma ideia de como era a vegetação antes de ser removida.
Plano federal para o bioma
Considerando esse prognóstico preocupante, Daniel do WWF celebra o novo sistema do Inpe para o bioma, tendo em vista que a ferramenta pode subsidiar recursos mais eficazes para políticas públicas urgentes.
No entanto, ele ressalta que, embora a notícia da operacionalização desse monitoramento oficial tenha sido recebida com entusiasmo, é necessário um plano Federal de combate ao desmatamento e às queimadas no Pantanal, seguindo a mesma linha do PPCDAm, o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal.
Na prática, um plano do tipo tem sua importância pois apresenta eixos de ação e objetivos para a estratégia de contenção do desmate.
No PPCDAm, por exemplo, o governo estipulou metas sobre o aumento de ações de fiscalização e o embargo à áreas ou atividades que estejam sofrendo ou causando algum dano ao meio ambiente.
“Embora o DETER Pantanal ainda necessite de ajustes, é um sistema crucial devido à sua avaliação diária dos alertas. Diariamente, há uma análise contínua desses alertas, embora o DETER não seja tão preciso quanto o MapBiomas. Nesse sentido, é fundamental passar por uma fase de refinamento para garantir a precisão das informações”, pondera também Figueirôa, do Instituto SOS Pantanal.
O g1 procurou o Ministério do Ambiente e da Mudança do Clima, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.
Crise do clima em jogo
Para complicar ainda mais esse cenário já desafiador, especialistas ouvidos pelo g1 alertam que as mudanças climáticas podem intensificar os desafios já enfrentados no Pantanal.
Isso porque a crise do clima os eventos extremos, como secas históricas, podem afetar a resiliência dos ecossistemas na região, aumentando a frequência e a intensidade dos incêndios florestais.
Projeções inclusive já indicam que o Pantanal enfrentará um aumento significativo nas temperaturas médias anuais, podendo chegar a até 7°C até o ano de 2100.
Se confirmado, esse aumento de temperatura teria implicações diretas no regime de chuvas da região, principalmente durante o inverno.
Essas mudanças seriam tão siginficativas que podem até mesmo colocar em risco a existência do Pantanal como o conhecemos, alerta o estudo “Climate Change Scenarios in the Pantanal”, de autoria da equipe do hidrologista e meteorologista José Antonio Marengo Orsini, do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), publicado em 2016.
“No cenário de aumentar 2,5°C no planeta, o Pantanal pode chegar a 5 ou 6°C. Então é realmente muito perigoso o que a gente está vendo com todos esses fatores relacionados à ação do homem somados às mudanças climáticas”, destaca Gustavo Figueirôa, biólogo e diretor de Comunicação e Engajamento do Instituto SOS Pantanal.
Por isso, assim como o colega, Daniel diz que ainda há muito a se avançar em termos de conservação e sustentabilidade considerando o cenário atual de desmatamento e degradação do bioma.
“Mudar a percepção que temos desses ecossistemas não florestais será um desafio para a Sociedade Civil e para as autoridades”.