Imagine um clássico do futebol brasileiro, como um jogo entre Flamengo e Vasco. Durante a partida, o árbitro marca um pênalti duvidoso para o Flamengo. Imediatamente, os flamenguistas defendem a decisão, afirmando que o contato foi claro e que o árbitro apenas “cumpriu as regras”. Já os vascaínos se revoltam, chamam a marcação de injusta e dizem que o juiz é ladrão.
Agora, no mesmo jogo, o árbitro deixa de marcar um pênalti evidente para o Vasco. Nesse caso, os flamenguistas acham a decisão justa, dizendo que “não foi nada” ou que “o jogador se jogou”. Enquanto isso, os vascaínos ficam indignados, acusando haver um complô para prejudicar seu time.
Esse é um exemplo clássico de raciocínio motivado: as pessoas avaliam decisões com base no impacto que elas têm no grupo ou na ideia que defendem, e não de forma objetiva. Na política, essa lógica se repete. Quando um candidato perde, surgem acusações de fraude e irregularidades. Já quando vence, as mesmas suspeitas desaparecem. As eleições nos Estados Unidos são um excelente exemplo disso.
Nas 48 horas que antecederam o pleito americano, o Digital Democracy Institute of the Americas (DDIA, Instituto de Democracia Digital nas Américas, em tradução livre), organização que promove uma democracia mais inclusiva e resiliente no ambiente digital, com foco na integridade da informação e na redução da polarização nas Américas, fez importantes observações sobre a disseminação de desinformação em grupos de Telegram e WhatsApp entre falantes de espanhol.
De acordo com o monitoramento feito, antes do resultado ser definido, uma das principais alegações que circularam foi sobre irregularidades em urnas eletrônicas no condado de Cambria, na Pensilvânia, usadas como base para acusações de fraude. Contas influentes no X (ex-Twitter), como a do influenciador Eduardo Menoni, alegaram que urnas estavam com problemas (o horário de votação foi estendido após erros técnicos) para impedir uma vitória de Trump. Essas postagens tiveram milhares de interações.
As alegações de fraude se intensificaram após Trump afirmar, sem provas, que houve “fraude massiva na Filadélfia”. Essa declaração no Truth Social se espalhou rapidamente para pelo menos 18 grupos públicos no WhatsApp e Telegram, alcançando cerca de 500.000 falantes de espanhol em 90 minutos. Mídias estatais russas, como a RT en Español, amplificaram a alegação, e influenciadores latinos como Eduardo Menoni e Emmanuel Rincón repercutiram-na no X, com mais de 1.000 compartilhamentos em cada postagem.
Contudo, assim que Trump foi projetado como vencedor pela Associated Press e pelas principais redes de TV (NBC, ABC, CBS, CNN e Fox News), o monitoramento da DDIA mostrou que as acusações de fraude desapareceram dos grupos latinos on-line. Dados da Palver, que faz mapeamento de narrativas e tendências, mostraram que, entre os dias 5 e 6 de novembro, 24 postagens mencionando “Trump” e “fraude” circularam em grupos de WhatsApp e Telegram, atingindo 526 mil membros. No entanto, entre 6 e 7 de novembro, apenas três mensagens com essas palavras-chave apareceram, em grupos que somavam 243 mil membros.
Seja no Flamengo e Vasco, seja no Kamala vs Trump, quando uma decisão nos favorece, tudo é justo e cristalino. Não há o que questionar. Mas, quando é contrária, certamente houve algo errado. Estamos cada vez mais inclinados a distorcer a realidade para ajustá-la às conclusões que queremos — mesmo que isso implique em acreditar em mentiras e espalhá-las com fervor.