Código Civil atualmente em vigor foi instituído em 2002. Proposta em elaboração por uma comissão de juristas também altera regras sobre reprodução assistida e usucapião. Reunião da comissão de juristas que discute a reforma do Código Civil no Senado, em setembro de 2023
Waldemir Barreto/Agência Senado
Uma comissão de juristas no Senado discutirá ao longo desta semana o relatório final e uma minuta de projeto para reformular o Código Civil, instituído em 2002 e que está em vigor desde 2003.
O colegiado foi criado pelo presidente da Casa, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), em agosto de 2023. De lá para cá, foram quase sete meses de encontros, audiências e discussões sobre as mudanças no código, que reúne normas para as relações entre pessoas jurídicas e físicas.
Presidida pelo ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a comissão terá até 12 de abril para concluir os trabalhos.
Em fevereiro, um relatório preliminar começou a ser construído, com uma sugestão para a minuta de projeto que será encaminhada a Pacheco (veja mais detalhes aqui).
O presidente da Casa poderá acolher a proposta integralmente ou parcialmente. Pacheco também poderá sugerir mudanças no texto.
Depois disso, ele será o responsável por protocolar a proposta, dando início à discussão pelos senadores. O procedimento foi o mesmo quando Pacheco apresentou um projeto para regular a inteligência artificial (IA) no país.
Texto preliminar
O texto preliminar, que ainda será submetido a votações dentro do colegiado, prevê modificações na maneira com a qual animais e famílias são reconhecidos pelo Estado. Também faz mudanças nas regras para proteção de pessoas no ambiente virtual e em sistemas de IA.
A proposta facilita a doação de órgãos pós-morte e estabelece normas para a reprodução assistida e barrigas solidárias.
E ainda acaba com as menções a “homem e mulher”, nas referências a casal ou família, abrindo caminho para proteger, no texto da lei, o direito de homossexuais ao casamento civil, à união estável e à formação de família.
Rodrigo Pacheco já elencou a análise da proposta no Senado como uma das prioridades da Casa em 2024.
“Aguardarei a finalização do trabalho da comissão de juristas, cujo conteúdo não tem nossa interferência. Na sequência, avaliarei o momento e a forma do início do processo legislativo em si”, afirmou o presidente do Senado ao g1.
Principais alterações
Confira a seguir, nesta reportagem, as principais mudanças previstas na reforma do Código Civil sobre:
doação de órgãos
famílias
casamentos
animais
proteção na internet e IA
reprodução assistida
posse de terra rural
Família de paciente internado em Marília (SP) autorizou doação de órgãos com uso de avião da FAB
HBU/Divulgação
Doação de órgãos
A proposta de reformulação do Código Civil prevê que não será necessária autorização familiar para doação de órgãos quando o doador falecido tiver deixado, por escrito, uma permissão para o transplante.
Na ausência do documento, a autorização poderá ser dada pelo parceiro ou familiares, seguindo a ordem de sucessão.
O texto preliminar também traz uma mudança no marco para reconhecimento de direitos às pessoas, estabelecendo que a personalidade civil de uma pessoa terá início com o nascimento com vida e terminará com a morte cerebral. A mudança, segundo juristas, permitirá maior segurança a transplantes de órgãos.
Os direitos de fetos ou nascituros continuam preservados, desde a concepção.
Além da doação de órgãos, a proposta preliminar prevê que uma pessoa doente poderá deixar diretrizes para tratamentos quando estiver incapaz. Também poderá escolher um representante para tomar decisões a respeito de sua saúde.
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Famílias
A prévia da proposta de reforma do Código Civil alarga a definição de família, passando a reconhecer as formadas por vínculos conjugais e não conjugais, como grupos familiares formados por irmãos. A mudança assegura direitos aos membros desses grupos familiares, como previdenciários.
O texto identifica como família:
casal que tenha convívio estável, contínuo, duradouro e público
famílias formadas por mães ou pais solo
e qualquer grupo que viva sob o mesmo teto com responsabilidades familiares
Não há, no texto, reconhecimento e proteção jurídica para famílias paralelas – quando uma pessoa tem duas famílias – ou poliafetivas, quando há mais de dois parceiros na relação.
A proposta também prevê inserir na lei a possibilidade de reconhecimento de parentesco com base no afeto — a chamada socioafetividade —, sem que haja vínculo sanguíneo entre as pessoas.
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Imagem mostra duas mulheres em cerimônia de casamento civil
Foto: Arquivo pessoal
Casamento civil
O relatório preliminar da reforma do Código Civil também avança em relação às regras para casamentos civis e uniões estáveis.
O texto retira menções a gêneros e passa a reconhecer que essas uniões se realizam entre “duas pessoas”, independentemente do gênero e da orientação sexual.
Há também a criação de um novo termo para se referir a pessoas unidas civilmente: os conviventes. A proposta também menciona “sociedade convivencial” como resultado da união estável, o que não significa a criação de uma nova forma de família.
Atualmente, o texto do Código Civil diz que o casamento e a união estável são realizados entre “o homem e a mulher”.
Desde 2011, porém, por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), casais homoafetivos têm direito à união estável. No último ano, um projeto apoiado por conservadores na Câmara dos Deputados usou as menções de gênero no Código para tentar proibir o reconhecimento de uniões homoafetivas.
Com a retirada dos termos, a proposta do novo Código Civil, se aprovada pelo Congresso, asseguraria à população LGBTQIA+ o direito às uniões civis.
Também há outras mudanças nas regras de casamentos. Por exemplo, o texto preliminar revoga um dispositivo que impede — e, portanto, passa a permitir — o matrimônio entre adotado e filho do adotante.
A proposta prevê, ainda, uma nova modalidade de divórcio ou dissolução de união estável, que poderá ser solicitada de forma unilateral. Ou seja, mesmo sem consenso, uma só pessoa do casal poderá requerer a separação, sem a necessidade de uma ação judicial.
Atualmente, existem três tipos de divórcio: judicial, quando há divergência; consensual; e extrajudicial, que pode ser feito em cartórios com consenso do casal.
Pelo texto proposto, para solicitar o divórcio unilateral, bastaria a pessoa ir ao cartório no qual foi registrada a união do casal. Após o pedido, uma notificação será feita ao outro cônjuge ou convivente. Depois de cinco dias, caso não atendida a notificação, que pode ser feita por edital, o divórcio seria efetivado.
Além disso, o projeto preliminar estabelece que, em eventual separação, o ex-casal deverá compartilhar — de forma igual — as despesas com filhos. Também deverá compartilhar gastos que envolvem animais de estimação, pertencentes ao ex-casal ou filhos e dependentes.
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Presidente de comissão que revisa o Código Civil fala da necessidade de atualização
Animais
Na proposta preliminar, os animais ganharam um capítulo inteiro voltado a estabelecer uma nova relação jurídica com esses seres vivos.
Pelo texto, os animais passarão a ser reconhecidos juridicamente como seres capazes de ter sentimentos e direitos.
Atualmente, o Código Civil trata os animais como bens móveis. Na prática, apesar de entendimentos diversos no Judiciário, o texto em vigor prevê que pets não têm proteção jurídica, sendo vinculados aos donos.
Segundo a proposta da comissão de juristas, os animais terão direito a uma proteção jurídica especial, que será definida em lei posterior.
O projeto também abre caminho para que animais sejam indenizados por violências e maus-tratos, a fim de reparar danos sofridos.
O capítulo que trata dos animais, no entanto, é um dos que tem sido alvo de maior divergência no colegiado. De um lado, membros defendem uma previsão maior de direitos. Do outro, há quem critique os avanços do texto por considerar que há uma tentativa de equiparar seres humanos e animais.
Também há discussão em torno da expressão “objeto de direito”, utilizada para se referir aos animais. Segundo juristas, a manutenção do trecho poderia levar a interpretações de que os pets seguem somente como itens do patrimônio dos donos.
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Proteção na internet e IA
O novo Código Civil em discussão no Senado também prevê estabelecer direitos e proteção às pessoas no ambiente virtual. No texto preliminar, o colegiado sugere a criação de um livro complementar ao Código para tratar somente do direito digital.
Antes do novo livro complementar, porém, a comissão propõe que as plataformas digitais são responsáveis civilmente pelo vazamento de dados de usuários ou terceiros. Também estabelece que as empresas devem adotar medidas para garantir a segurança das informações de usuários.
O uso de inteligência artificial nessas plataformas deverá, segundo a proposta, ser sinalizado e seguir “padrões éticos necessários”.
Outra mudança sugerida pelos juristas é inserir no Código Civil que indenizações poderão ser cobradas por danos cometidos no ambiente virtual.
▶️ Exclusão de conteúdo e responsabilização
No livro complementar ao novo Código Civil, a comissão propõe permitir que usuários:
peçam a exclusão de dados pessoais expostos sem finalidade justificada, desde que não sejam públicos ou necessários para a liberdade de expressão
peçam a exclusão permanente de informações que causarem danos aos seus direitos fundamentais ou de personalidade
Também assegura o direito à remoção de links em mecanismos de buscas de conteúdos que exponham:
imagens pessoais íntimas ou explícitas
pornografia falsa
informações de identificação pessoal
crianças e adolescentes
A proposta estabelece, ainda, que as plataformas deverão adotar mecanismos para identificar e mitigar a disseminação de conteúdos ilícitos.
Segundo o texto, as empresas poderão ser responsabilizadas administrativamente e civilmente por danos causados por conteúdos gerados por terceiros.
▶️ Herança digital
O colegiado propõe reconhecer a existência do chamado patrimônio digital, que inclui senhas de redes sociais, criptomoedas e milhas aéreas, por exemplo. Pelo texto, o patrimônio poderá ser herdado e descrito em testamento.
A exceção será o arquivo de mensagens privadas, que não poderá ser acessado pelos herdeiros, salvo por vontade expressa da pessoa falecida ou por decisão judicial.
A proposta também estabelece que representantes ou herdeiros poderão pedir a exclusão de perfis em redes sociais da pessoa falecida, desde que não haja vontade contrária expressa. Também será possível transformar o perfil em memorial.
A exclusão será feita em 180 dias para mortos que não tiverem representantes legais.
▶️ Crianças e adolescentes na internet
O texto da comissão propõe que as plataformas digitais terão o dever de proteger os direitos e os dados de crianças e adolescentes. Deverão, por exemplo, adotar mecanismos para verificar a idade do usuário e impedir a exibição de conteúdos inadequados.
Também proíbe publicidades em produtos e serviços de tecnologia voltadas a crianças e adolescentes.
▶️ Inteligência artificial
O novo livro complementar do novo Código Civil prevê estabelecer regras para o desenvolvimento de sistemas de inteligência artificial (IA) no país. Segundo o texto, entre outros critérios, devem ser respeitados os direitos fundamentais.
A proposta estabelece que usuários deverão ser informados quando interagirem com uma ferramenta de IA.
Também autoriza a criação de imagens de pessoas vivas ou falecidas, desde que para atividades lícitas e com:
consentimento da pessoa
consentimento expresso dos herdeiros
respeito à dignidade, à reputação e ao legado da pessoa
O uso comercial dessas imagens somente poderá ocorrer se houver autorização expressa da pessoa ou de representantes e herdeiros.
Todos os conteúdos gerados deverão indicar o uso da IA.
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Reprodução assistida
A reprodução assistida é outro tema que ganhou espaço na proposta do novo Código Civil. O texto atualmente em vigor não aborda a prática.
A proposta em discussão no Senado afasta qualquer discriminação a pessoas nascidas por técnicas de reprodução assistida e traz um regramento para a prática.
Proíbe, por exemplo, o uso das técnicas reprodutivas para:
criar seres humanos geneticamente modificados
criar embriões para investigação científica
criar embriões para escolha de sexo ou cor
O relatório preliminar deixa claro que será proibida a comercialização de óvulos e espermatozoides. Também prevê que não há vínculo de filiação entre o doador e a pessoa nascida a partir do material genético.
A doação é autorizada para maiores de 18 anos. Médicos e funcionários dos espaços de reprodução humana não poderão ser doadores na rede ou na unidade em que trabalham.
A comissão de juristas propõe permitir o uso de material genético de pessoas mortas, desde que haja manifestação expressa anterior.
A proposta determina sigilo para todos os dados relacionados aos doadores, mas prevê que as informações devem ser repassadas ao Sistema Nacional de Produção de Embriões. A medida serve para que os cartórios verifiquem, na fase pré-nupcial, se um casal é formado, por exemplo, por pais e filhos, ou avós e netos.
O texto também estabelece que o sigilo poderá ser quebrado mediante decisão judicial, tanto do doador quanto da pessoa nascida com o material genético. Isso poderá ocorrer, por exemplo, em casos de riscos para a vida e saúde do doador e da pessoa.
▶️ Barriga solidária
O relatório preliminar também regula as barrigas solidárias, que não envolvem recompensa financeira entre as partes. Atualmente, a prática é permitida por uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM).
Segundo o texto, preferencialmente, a doação temporária do útero para gestação deverá ocorrer de alguém com parentesco com os futuros pais.
A barriga solidária deverá ser formalizada em documento, que deve deixar claro quem serão os pais da criança gerada.
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Posse de terra rural
O relatório preliminar da comissão de juristas propõe também uma mudança na aquisição de propriedades rurais pelo tempo de posse, a chamada usucapião.
Atualmente, a regra sobre usucapião permite que pessoas que ocupem terras rurais por cinco anos seguidos, sem conflitos, conquistem a propriedade.
O colegiado prevê incluir que uma pessoa somente poderá ter direito ao reconhecimento da propriedade uma única vez. A medida é uma forma de combater a grilagem, prática criminosa na qual há apropriação de terras por meio de documentos falsificados.
Regra semelhante já existe para a usucapião em áreas urbanas.
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