Embates entre Executivo versus Legislativo versus Judiciário e vice-versa não são incomuns nas democracias. Fora a Justiça, que deveria se manter longe dos holofotes e só se manifestar nos autos, as discordâncias entre Parlamento e governo são bem-vindas e, em tese, até indispensáveis para aprimorar as políticas públicas. Em tese. Por aqui, o bem público passa longe de quem deveria zelar por ele, com disparatadas medições de forças e poder, malcriações e muita falta de juízo.
Até o presidente do Senado Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que buscava construir para si uma imagem de ponderação frente à dicotomia da política nacional, falhou feio. Só na última semana, dois projetos de sua lavra selaram seu divórcio com a moderação. Sua PEC de criminalização constitucional do porte de drogas, algo já contemplado pela lei, só voltou à tona em resposta à maioria formada no STF para diferenciar traficantes e usuários de maconha. Vingança pura. Não bastasse, para ficar de bem com a turma da toga, fez andar a absurda proposta do quinquênio para o Judiciário e o Ministério Público, uma excrescência que privilegia as categorias públicas mais bem remuneradas do país.
A brincadeirinha de mau gosto já aprovada na Comissão de Constituição e Justiça pode custar R$ 45 bilhões aos cofres da União, sem contar o efeito cascata nas contas dos estados, escancarando o quanto os senhores senadores estão preocupados com o destino dos impostos dos brasileiros.
Na Câmara, boa parte dos deputados se dedica a satisfazer correligionários locais em ano de eleições municipais. Querem mais dinheiro para seus currais e devem obrigar o governo Lula a pagar pelo menos R$ 3 bilhões dos R$ 5,6 bilhões das emendas suspensas no início do ano.
O clima de beligerância capitaneado pelo presidente da Casa Arthur Lira (PP-AL) é permanente e nada, é claro, tem a ver com o interesse público.
Depois de perder a compostura, chamando o ministro das Relações Institucionais Alexandre Padilha de “incompetente” e “desafeto pessoal”, Lira reagiu à fala de Lula – que, em defesa do auxiliar, disse que o manteria “só por teimosia” -, e à exoneração de um primo do Incra de Alagoas. Fez chegar à imprensa sua pretensão de instalar cinco CPIs simultâneas, o que deixaria os governistas como baratas tontas para monitorar tantos fóruns contrários a eles. Entre paredes, também ameaçou não deixar andar a pauta econômica.
O presidente Lula decidiu entrar em campo, anunciando na sexta-feira que vai conversar com Lira e Pacheco. Tardiamente, depois de arrombadas as metas futuras do arcabouço fiscal, da disparada do dólar frente ao real e dos alertas amarelos na percepção popular sobre ele e seu governo. Lula sabe que ameaças não passam de mecanismos de pressão para se chegar a um acordo “proveitoso”, não raro nada republicano. A saída costuma consumir mais dinheiro dos impostos para fins que distam anos-luz das necessidades do público pagante.
O STF também está na mira da Câmara e do Senado, que não escondem o desejo de limitar as ações dos ministros daquela Casa. Condenam, e por vezes com razão, as derrapadas da Corte.
A direita, com destaque para os mais extremados, acusa o Supremo de agir como apêndice do governo e muitas das decisões do STF, em especial o “perdão” a Lula e as recentes canetadas do ministro Dias Toffoli suspendendo efeitos de delações da Lava Jato, corroboram com isso. Aproveita-se agora das críticas de Elon Musk ao ministro Alexandre de Moraes e do apoio que o bilionário recebeu dos republicanos de Donald Trump para denunciar ao mundo a “ditadura do STF”.
Por sua vez, o Supremo alimenta a crise, dando argumentos aos bolsonaristas ao insistir em manter processos em sigilo.
Já a esquerda, pouco ágil nas redes sociais, não consegue responder aos ataques do outro time. Nem mesmo fazer alarde com a nefasta decisão do ministro bolsonarista Kássio Nunes em favor do bicheiro Rogério de Andrade, criminoso hereditário com bons amigos entre os políticos.
O que se tem hoje é um governo descoordenado, abalado por uma oposição forte e inimigos internos (o PT da ala Gleisi Hoffmann e Rui Costa que o digam); ministros do STF encantados com seus superpoderes, colocando em risco o crédito da prerrogativa da última palavra; e um Parlamento de costas para o país. Em resumo, os brasileiros estão pagando por um Estado disfuncional.
Mary Zaidan é jornalista
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