Histórias de mulheres trans que hoje se destacam nas apresentações mostram como a cultura junina tem acolhido a diversidade de quem faz a festa. Mulheres trans têm conquistado espaços de destaque nas quadrilhas juninas do Ceará
Dos bastidores para o centro do espetáculo. Dos episódios de silenciamento para a afirmação da própria identidade. Estes movimentos têm acompanhado, na última década, a vivência das mulheres trans nas quadrilhas juninas do Ceará. Partindo de trajetórias distintas, elas têm conquistado espaços e evidenciam a diversidade da festa popular.
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No Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+, o g1 traz histórias de mulheres trans que brilham no São João e representam a luta por visibilidade e respeito. E mostra que a festa estruturada por papéis tradicionais de gênero é também espaço de diversidade e de combate à homofobia e à transfobia.
A primeira a ganhar o título de melhor rainha
Hayka Moraes é rainha da quadrilha Filhos do Sertão desde 2022
Filhos do Sertão/Divulgação
Na vida de Hayka Moraes, a decisão pela transição de gênero aconteceu de uma forma tranquila e com muito apoio da família. Nascida em Fortaleza, ela começou na adolescência um processo que envolveria hormonização e cirurgia de redesignação sexual. Hoje, aos 27 anos, Hayka é rainha do grupo junino Filhos do Sertão.
Ela começou na quadrilha como brincante há dez anos. E sempre percebeu que o grupo respeita a diversidade sexual ao acolher e dar destaque para as pessoas LGBTQIA+.
“Antes, os grupos juninos tinham muito receio de deixar as meninas trans e as que se montam de menina dançarem. Elas tinham que ser aceitas. E a Filhos do Sertão sempre abriu a porta, ela é pioneira”, comenta Hayka.
Ela foi convidada a assumir o lugar de rainha da quadrilha em 2022. Nos grupos juninos do circuito competitivo, a rainha tem uma posição de grande evidência. Durante as apresentações, elas costumam representar um personagem vinculado ao tema defendido pela quadrilha e são avaliadas individualmente, influenciando na pontuação.
Honrada com o convite, Hayka confessa que a novidade também chegou com uma dose de preocupação.
“Na minha cabeça, eu tinha muito receio de como eu ia ser julgada. Será que eu seria julgada por ser rainha ou por ser trans? O meu maior medo também era das pessoas da minha própria bandeira. Eu tinha muito medo de elas não me aceitarem, mas eu fui muito acolhida, onde eu passava era uma loucura”, relembra.
Hayka Moraes foi a primeira mulher trans premiada como melhor rainha nos festejos do Ceará Junino
Filhos do Sertão/Divulgação
A rainha foi reconhecida pelo talento na primeira temporada de competições. Em 2022, ela foi a primeira mulher trans a receber o título de Melhor Rainha na competição Festejo Ceará Junino. E segue celebrando conquistas, também sendo eleita a Melhor Rainha no Arraiá do Ceará em 2024.
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Ela revela que aposta em coreografias que transmitem delicadeza, simpatia e beleza. E que carrega a responsabilidade de representar outras meninas trans, os gays, as drag queens e transformistas que se apresentam com indumentária feminina nas festas. Assim, Hayka ficou conhecida como a ‘Rainha do Movimento’.
“Hoje em dia, eu acho que a gente ganhou mais espaço. A gente não está mais atrás, nos bastidores como maquiadores e cabeleireiros. Hoje a gente está fazendo os temas, a gente tem rainha, marcadoras que são mulheres trans… E a Filhos do Sertão abriu espaços pra muitas meninas”, comemora Hayka.
Antes trabalhando como cabeleireira e maquiadora, hoje ela se sustenta como parte da Associação Cultural, Esportiva e Social Filhos do Sertão. A organização realiza trabalhos sociais junto às comunidades na região do bairro Jardim das Oliveiras.
Violência contra Dandara virou tema
O grupo Girassol do Sertão fez memória à violência contra a travesti Dandara nas apresentações de 2018.
Reprodução
Um dos marcos para a visibilidade de pessoas LGBTQIA+ no São João cearense foi a apresentação do grupo Girassol do Sertão, do município de Russas, com a encenação da violência sofrida por Dandara dos Santos, travesti brutalmente assassinada em Fortaleza no ano anterior.
O crime ganhou repercussão internacional e está longe de ser isolado: o Ceará tem aparecido como líder entre os estados que mais matam a população LGBTQIA+ nos últimos anos. Em 2022, por exemplo, foram 32 homicídios registrados no levantamento do Anuário Brasileiro da Segurança Pública.
Ainda era 2018 quando a quadrilha junina trouxe o tema “Minha Manifestação Cultural Também é Política”. A performance incluía a música “Geni e o Zeppelin”, de Chico Buarque, seguido da encenação de quando Dandara foi espancada e teve o corpo levado em um carrinho de mão.
Nas quadras, Dandara era interpretada por Cíntia Freitas, mulher trans que foi convidada para ser a rainha da quadrilha naquele ano. Nascida em Russas, Cíntia dançava quadrilha desde adolescente, mas usando as vestes de um cavalheiro. Na vida adulta, passou a dançar como dama.
“É aquela coisa: uns aceitam e outros não aceitam. Só que, pra mim, não importa. Eles não pagam minhas contas”, resume Cíntia sobre a reação dos outros.
Na apresentação da Girassol do Sertão em 2018, ela trazia para as quadras o grito: “Dandara presente! Parem de nos matar! Eu sou Cíntia Freitas, sou mulher trans e faço parte dessa sociedade!”. Mesmo tendo sido bem acolhida entre as pessoas da convivência, ela buscou representar outras pessoas LGBTQIA+ que passam por episódios de violência.
Grupo junino homenageia Dandara, travesti torturada e assassinada no Ceará
“A gente se sente tocada com aquela encenação. A gente vê que é uma situação muito agressiva, um sofrimento que qualquer mulher trans pode passar a qualquer momento”, relembra.
Depois da pandemia, Cíntia ainda voltou a dançar com outra quadrilha, a Junina Renascer. Há dois anos, a cabeleireira não se apresenta em quadrilhas por conta de um problema na coluna.
Longe dos festejos, ela recorda a importância dos grupos juninos que têm aberto espaços para temas e posições de destaque para a comunidade LGBTQIA+.
“O São João contribui porque aborda muitas pessoas no mesmo local quando passa a sua mensagem. Tem quem não entende, né? Mas às vezes, quem tá assistindo é uma pessoa que tá passando por aquela situação. Ou, às vezes, é até quem está fazendo um ato de preconceito em casa com o próprio filho e passa a ver que é mais importante amar do que ficar julgando”, exemplifica.
Com posicionamentos políticos e abertura para a diversidade, a cultura junina se firma como aliada no enfrentamento às variadas formas de violência antes naturalizadas na sociedade.
Subversão da estrutura binária e heteronormativa
A quadrilha veio da cultura europeia com passos coreografados para serem dançados em pares.
Biblioteca Pública de Nova York/Coleção Digital
A quadrilha é um dos diversos símbolos das festas juninas brasileiras. Ela vem de uma dança de pares com origens na cultura europeia que chegou ao Brasil por influência dos colonizadores portugueses.
Perpetuada e reeditada até hoje na cultura popular, a quadrilha junina é considerada uma tradição. No entanto, tradições dialogam com os tempos e lugares onde são construídas. Não são imutáveis nem dissociadas do cotidiano de quem faz a festa, como destaca Hayeska Barroso, professora adjunta do Departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília (UnB).
Hayeska ministra o módulo de Gênero e Raça para as pessoas que passam por uma formação quando querem se tornar avaliadores das competições, em processo mediado pela Federação de Quadrilhas Juninas do Ceará (Fequajuce).
Na carreira acadêmica, a pesquisadora estudou aspectos da cultura junina no Ceará no mestrado e no doutorado, entendendo a complexidade e a capacidade de reinvenção das festas populares.
Um dos temas analisados foi sobre as diversas performances de gênero presentes no São João, olhando principalmente para o circuito oficial das quadrilhas cearenses que participam de competições.
“Existe um paradoxo. A festa se reinventa, mas a quadrilha continua tendo uma organização binária, no sentido de que a apresentação se estrutura em torno do que se concebe por feminino e por masculino”, pontua Hayeska.
Ela recorda que a homenagem a Dandara com uma rainha trans, em 2018, causou grande repercussão nos grupos juninos, com falas de pessoas que não concordavam com a manifestação política ou com a presença de uma pessoa trans no lugar de uma mulher cisgênero.
Menos de uma década depois, o cenário já parece ser bem diferente na percepção da pesquisadora.
“Durante muito tempo, quaisquer coisas relacionadas à sexualidade eram tratadas dentro do espetáculo de maneira muito jocosa. Por exemplo: um gay, uma travesti, uma ‘sapatão’… Eles iam aparecer na hora do casamento de forma muito caricata. Quando a gente começa a transicionar a presença desse sujeito para além do personagem cômico no casamento, para assumir outros lugares e outras posições, isso foi um processo paulatino. Uma das pioneiras foi a Filhos do Sertão”, detalha.
Na última década, grupos juninos têm dedicado espaços de destaques para pessoas que representam a diversidade sexual e de gênero
Filhos do Sertão/Divulgação
O processo não tem sido simples. Coletando depoimentos e conhecendo a realidade dos grupos quando fez a pesquisa, Hayeska encontrou situações diversas.
Uma delas: pessoas que só se montavam com personagem feminina para representar a sua quadrilha no concurso de Rainha da Diversidade (ou Rainha G), mas voltando para dançar como cavalheiros nas apresentações do grupo. Havia casos em que elas tinham permissão para trazer suas personagens femininas, mas ocupando as últimas fileiras da quadrilha.
“Na minha quadrilha, homem tem que ser macho” e “pode até ser ‘viado’, mas não pode desmunhecar” foram frases reais ouvidas por Hayeska enquanto pesquisava o tema, com pessoas que não demonstravam constrangimento ao falar dessa forma.
Como comenta, as resistências vinham, muitas vezes, na fala de pessoas que se portavam como ‘guardiãs da tradição’. Para ela, esta postura estava frequentemente vinculada a uma visão purista, de quem via em qualquer elemento novo a ameaça de descaracterizar a festa.
No entanto, a pesquisadora observa que a festa popular dialoga com o que acontece na sociedade, que tem avançado na qualidade das discussões sobre a comunidade LGBTQIA+ na última década.
“A apresentação continua sendo binária, continua sendo heteronormativa, o que, por sua vez, não impede que, pelas frestas, esse também seja um espaço de visibilidade para as mais diversas performances de gênero. Coexistem ali elementos binários e elementos transgressores desses códigos”, enfatiza Hayeska.
Ao auxiliar na formação de novos avaliadores, a pesquisadora faz questão de dialogar com os futuros jurados das competições sobre as práticas racistas, homofóbicas e transfóbicas que devem ser superadas na cultura junina.
Segundo Hayeska, a carga horária do módulo não é suficiente para promover uma mudança de mentalidade. No entanto, ela foca em configurar o racismo e a homofobia como crimes no Brasil, lembrando que há consequências cíveis e criminais para as várias formas de violência.
Diversas expressões da identidade
Adrielly Oliveira e Naty Natasha são algumas das brincantes que representam a diversidade sexual na cultura junina
Reprodução
Vivenciar a própria identidade nos festejos juninos não é um processo linear ou padronizado para todas as pessoas LGBTQIA+.
Como lembra Hayeska Barroso, as experiências são variadas, com drag queens, travestis e transformistas, com mulheres trans e também com pessoas que performam com personagens femininas apenas durante as festas.
Dar visibilidade a estas pessoas, segundo a pesquisadora, é também um reconhecimento a quem sempre foi essencial para a festa.
“Essas eram as pessoas responsáveis pela coreografia, as que ensinavam às damas todos os trejeitos, todos os passos. Mas esse processo de sair da última fileira para chegar à frente da quadrilha, para assumir uma posição de destaque, é um tensionamento permanente”, conclui.
Os caminhos abertos nos últimos anos também servem de incentivo para quem vem chegando nos grupos juninos. O acolhimento da quadrilha Filhos do Sertão e o exemplo da atual rainha Hayka Moraes são fatores que inspiram a brincante Naty Natasha, de 21 anos, que ainda vivencia o processo de transição de gênero.
A aproximação com a identidade feminina foi um processo natural para a jovem, que atualmente é funcionária pública. Descobrindo aos poucos o desejo de ser uma mulher trans, ela começou a se montar como transformista em festejos do Dia da Independência.
Naty Natasha representou a quadrilha Filhos do Sertão no concurso de Rainha G, em Fortaleza
Arquivo Pessoal
Naty é apaixonada pelas festas juninas desde criança e já foi o par masculino da rainha enquanto dançava quadrilha na escola. Em 2020, ela dançaria como dama pela primeira vez, mas a pandemia paralisou as atividades da festa.
Com o retorno dos festejos em 2022, ela entrou para o grupo Filhos do Sertão, onde dança até hoje como dama na primeira fileira durante as apresentações.
“A quadrilha [Filhos do Sertão] é uma referência em damas trans, foi uma quadrilha que abriu portas aqui no Ceará. Foi onde eu me senti acolhida e onde eu senti que estava no lugar certo pra ser quem eu era”, partilha Naty.
Quando lembra do período em que dançava como cavalheiro e compara com os anos dançando quadrilha como dama, Naty pensa em uma palavra: conforto.
“Quando a gente ainda tá no corpo e não se identifica com ele, é muito desconfortável. Você está feliz ali, você está aproveitando o São João, que é uma coisa que você tanto ama, mas você não está confortável, não se sente à vontade. E, hoje em dia, eu me sinto muito à vontade em ser quem eu sou”, declara.
Em 2024, Naty foi a representante da quadrilha no concurso da Rainha G, em Fortaleza. Para ela, a competição é um momento de celebrar e dar visibilidade às pessoas LGBTQIA+ que amam e fazem o São João.
Quem também prepara representar o grupo em competições específicas é a Adrielly Oliveira, de 20 anos, que dança atualmente na quadrilha Santa Teresinha do Menino Jesus, de Caucaia, na região metropolitana de Fortaleza.
Adrielly Oliveira traz a performance como dama durante as apresentações do São João
Reprodução
É apenas no contexto junino que Adrielly surge como brincante em trajes femininos. A primeira vez foi em 2021, quando foi convidada para se montar como rainha. Neste ano, ela preparou uma performance como noiva em um concurso de destaques juninos em Caucaia.
Para Adrielly, dançar quadrilha é quase uma atividade terapêutica. Ela também auxilia nas coreografias e no preparo de figurinos. A jovem comenta que, até agora, encontrou ambientes acolhedores para participar da festa como dama.
“Antes, eu via que existia muito preconceito. De pessoas que diziam ‘você não vai porque você se monta’. Hoje eu já vejo que somos muito respeitadas e que alcançamos um lugar que sempre era pra ter sido nosso, pois não era pra ter existido tanto questionamento”, defende Adrielly.
Na experiência de Naty Natasha, o respeito e o acolhimento encontrados atualmente no mundo junino ainda não são posturas facilmente vistas em outros ambientes, como no mercado de trabalho ou em espaços religiosos. Por isso, ela considera que a festa ainda tem muito a ensinar à sociedade.
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