Não basta ser bom de gogó para que se consiga governar. Getúlio Vargas era ruim de gogó e governou o Brasil de 1930 a 1945 como ditador, e de 1950 a 1954 como presidente eleito pelo voto popular. Matou-se com um tiro no peito para não ser derrubado mais uma vez por um golpe militar. O golpe só ocorreu 10 anos depois.
Mas Juscelino Kubitschek era bom de gogó, Jânio Quadros, Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso e Lula também, cada um e suas circunstâncias. Nenhum dos generais-presidentes da ditadura foi bom de gogó, mas eles tinham a força ao seu lado. O voto e a anarquia militar puseram fim à ditadura.
Atribui-se a Fernando Henrique uma frase que ele nunca disse: a de que teria governado pela primeira vez com o gogó. Da segunda vez, o gogó não bastou. O Plano Real, que o elegeu em 1994, perdera o encanto, o país já não estava bem, e seu candidato a presidente em 2002, José Serra, acabou derrotado por Lula.
No último volume dos “Diários da Presidência”, obra que ditou para um gravador durante seus oito anos de governo, Fernando Henrique diz que para negociar com o Congresso foi preciso “botar a mão na lama”. E explicou, sem descer a detalhes:
– Há setores políticos da base que são uma podridão. Esse é o problema do Brasil. Não é a maioria, mas os mais espertos dominam parte importante da maioria, e eles são partes do jogo brasileiro.
– Não tenho preocupação com pessoas nem com o falso moralismo. Tenho que contar com o que existe aí. É botar a mão na lama para fazer adobe (tijolo) e construir uma casa. É complicado.
Lula sabe exatamente o que Fernando Henrique quis dizer. Nos seus primeiros dois governos, Lula também teve que pôr a mão na lama para governar com “o que existe aí”. Deu no que deu no Lula 1: o escândalo do mensalão do PT; e no Lula 2, o Petrolão. Pagou muito caro por isso. Pegou 580 dias de prisão.
Fernando Henrique sempre contou com a proteção do establishment; Lula, com a sua hostilidade. Em 2022, uma pequena fração do establishment votou em Lula para livrar-se de Bolsonaro, o pior presidente da história, a quem apoiara em 2018 acreditando que assim poria o último prego no caixão da esquerda.
Lula voltou por um sopro de votos. A esperança do establishment é que o prego possa ser batido em definitivo daqui a dois anos, sem Bolsonaro, mas com um nome da direita que tenta em se apresentar como civilizada, essa mesma direita que, hoje, boicota todos os esforços do governo para tirar o país do buraco.
Em setembro de 1993, com a experiência de dois mandatos como deputado federal, Lula disse a respeito do Congresso:
– Há [ali] uma maioria de 300 picaretas que defendem apenas seus próprios interesses.
Cobrado a se explicar, disse mais tarde que defendia o poder Legislativo: “O resto é gente boa […] que vota por convicção ideológica e não por fisiologismo.” A menção aos picaretas virou letra de música da banda Paralamas do Sucesso:
– Luiz Inácio falou, Luiz Inácio avisou/São 300 picaretas com anel de doutor.
É com 300 ou mais picaretas que Lula 3 é obrigado a negociar, com a diferença de que o Congresso naquela época era muito menos poderoso e não votava apenas em troca de dinheiro.
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