Imaginar uma sala de aula dentro de um presídio já é algo que, por si só, pode atiçar a curiosidade de muitas pessoas. “O professor tem contato direto com os alunos?”; “Os professores não têm medo?”; “Funciona como uma escola normal?” são algumas das questões que passam pela cabeça de quem, de fora, imagina a situação. Essas dúvidas se multiplicam quando a professora, no caso, é uma trans: a primeira a lecionar no sistema prisional. Essa é a realidade da Edu Dias, 42 anos. Ao Metrópoles, ela resume a própria história, fala dos desafios e traz uma visão qualificada acerca dos alunos.
Edu é doutora em literatura, mestre em linguística aplicada e mestranda em políticas públicas para infância e juventude pela Universidade de Brasília (UnB). Começou a dar aulas em 2003, tendo trabalhado durante 16 anos no Centro Interescolar de Línguas (CIL) do DF.
Desde o início deste ano, Edu está lotada no Centro Educacional (CED) 01 de Brasília como professora de letras. O CED 01 é responsável pelo ensino no Sistema Penitenciário do DF e conta com professores atuando em oito unidades da capital. Edu trabalha em uma delas, a Penitenciária do Distrito Federal (PDF) I, no Complexo Penitenciário da Papuda, onde dá aulas de segunda a quarta-feira.
“No primeiro semestre deste ano, eu dava aulas de inglês e português. Agora, só dou aulas de inglês”, explica Edu. A professora lida com cerca de 200 alunos, entre 18 e 60 anos, divididos em 15 turmas.
Os estudantes são divididos em cinco segmentos (conceito similar aos ensinos infantil e fundamental). Há ainda a Educação de Jovens e Adultos (EJA), onde há três segmentos que simulam os três anos do ensino médio. A cada semestre, o aluno passa por um desses segmentos.
“Gaiola” separa professor dos alunos
Uma das inúmeras particularidades de lecionar em um presídio é a separação física entre aluno e professor. Edu, por exemplo, dá aula de dentro de uma espécie de “gaiola” para que os custodiados não tenham acesso direto a ela, fisicamente.
“No primeiro dia, eu me senti num zoológico: eu do lado de cá da grade, e o visitante me olhando, e pensando: ‘Quem é você? O que é você?’. Recebi muitos olhares”, relembra a doutora. “Foi muito impactante. No dia seguinte, eu nem dormi. Comentei com meu marido: ‘Será que eu vou dar conta?’. Aquilo mexeu muito comigo”, complementa Edu.
A educadora diz que o gradeamento, às vezes, dificulta. “Estamos falando de alfabetização. Como é que se alfabetiza um estudante sem estar ao lado dele?! Mas a gente entende e tenta trabalhar da melhor maneira possível”, pontua.
A Edu — e qualquer outro professor do Sistema Penitenciário — só pode entrar em sala de aula com a presença de um policial penal. “Os policiais penais ficam na ‘gaiola’ comigo, em um lugar mais alto, olhando todo o pátio, que é onde as aulas são realizadas”. Além disso, a professora não pode usar certos materiais comuns em uma sala de aula, como tesouras, cadernos com arame, tecido tipo TNT e músicas ou filmes em inglês.
Oito horas sem fazer xixi
Além dos obstáculos a serem deixados para trás enquanto professora, Edu é obrigada a lidar com o preconceito sofrido por simplesmente ser quem ela é.
Edu não nega que, ao chegar na PDF I, foi discriminada. Mas, diferente do que a maioria poderia pensar, os olhares de julgamento, os comentários transfóbicos e as posturas intimidatórias não partiram dos alunos, mas sim dos policiais penais. Com medo, ela evitava usar o banheiro e ficava o dia inteiro sem fazer xixi, por exemplo.
“Nunca usei o banheiro da escola sozinha, eu ficava oito horas sem fazer xixi. Um dia, um colega professor, muito sensível, percebeu isso e passou a me convidar ao banheiro masculino. Ele era a segurança que eu tinha, e eu era muito grata. Mas quando eu coloquei a prótese, passei a não me sentir confortável em frequentar o sanitário dos homens. Então, eu seguia segurando o meu xixi”, comenta.
Como exemplo de episódios negativos envolvendo policiais penais, Edu relembra uma situação ocorrida nesta semana, pouco tempo depois de a professora tomar coragem para frequentar o banheiro feminino, com o qual se identifica.
“Nesta semana, eu fui retocar a maquiagem no banheiro feminino e tinham três policiais femininas lá dentro, numa conversa bem efervescente. De repente, quando eu entro, aquela conversa vai esfriando, até que se acaba. Duas delas, então, saem; e a terceira sai em seguida”, relata.
“Uma hora depois, eu recebo uma notícia formidável de que separaram um banheiro sem tipificação para mim. Eu agradeci e falei: ‘Nossa, me sinto muito agradecida por esse espaço, mas eu estou segurando meu xixi desde fevereiro e hoje, no fim de novembro, acharam a solução para mim?! Sou grata, mas quero conversar com a chefia para entender bem a história’”, prossegue a Edu.
A professora, então, descobriu que o banheiro sem tipificação não era bem um presente. “Eu soube que aquelas três policiais penais que deixaram o banheiro procuraram a diretoria para contar que se sentiram incomodadas com a minha presença. E aí a chefia decidiu resolver criando o banheiro sem tipificação. E fez isso por força de lei, não foi uma coisa voluntariosa. Agradeci novamente, mas disse que nada vai me impedir de usar o banheiro feminino, porque eu tenho essa prerrogativa de usar o banheiro com o qual eu me identifico.”
Edu reforça que os únicos episódios de rusgas e ruídos de comunicação ocorridos em dias de aula foram com os policiais penais, e não com os presos. “Eles [os policiais] não estão acostumados com a minha presença, acho que nunca viram uma travesti na posição que hoje eu ocupo”, comenta a professora.
Em outra ocasião, Edu decidiu romper a tensão e bater de frente com os servidores. “Houve uma por exemplo, em que dois policiais e eu estávamos enchendo nossas garrafinhas em um dos bebedouros da PDF I. Era nítida a tensão no ar: eu com minha garrafa e os agentes a três torneiras de distância. De repente, um policial cutuca o outro e fala algo como: ‘Olha aí, olha isso aí’. E eu decidi responder: ‘Isso o quê?’. Eles ficaram sem graça, e eu repeti: ‘Isso o quê?’.”
“A travesti sempre é a custodiada, a presa. Se não tá presa, tá marginalizada. A travesti só é vista na penumbra, no beco, nunca como professora doutora. Você sequer vê uma travesti no restaurante, na padaria. O Brasil é, há 14 anos seguidos, o país que mais mata travestis e pessoas trans. A expectativa de vida de uma travesti é de 29 anos. Quando uma travesti morre, é sempre a pauladas, com mutilação de seios, genitália cortada e colocada na boca. É o criminoso dizendo que aquela pessoa não é gente, não é ser humano. Enquanto isso, o Brasil é o país que mais consome pornografia trans. Todo dia, no meu Instagram, eu recebo convites de cunho sexual. É o paradoxo entre objeto e abjeto”, reflete a doutora.
“Os melhores alunos de toda a minha carreira”
Se com os policiais a relação não é harmoniosa, o cenário é totalmente diferente entre a Edu e os custodiados. “Eles são os melhores alunos que tive em toda a minha carreira”, assegura a doutora.
“Quando eu chego em casa, o meu marido me pergunta: ‘E aí, como foi seu dia?’. E eu sempre respondo: ‘Eles são os melhores alunos que tive em toda a minha carreira enquanto docente’”, surpreende. “Pode ser uma coisa paradoxal, mas é simples: aqueles alunos estão ali prestando total atenção, são super interessados. Além disso, não tem a questão do celular, das mídias eletrônicas e outras coisas que possam desviar a atenção”, explica Edu.
Quando chegou à PDF I, em fevereiro, Edu teve uma recepção “excelente”. “No fim do semestre passado, inclusive, eles me perguntaram coisas do tipo: ‘Professora, a senhora se sentiu acolhida? Alguém lhe ofendeu? A senhora foi ofendida por alguém?’, revela. “É claro que existem as perguntas curiosas, como: ‘Você é casada?’, ‘O que são as letras da sigla LGBTQIAPN+?’, e coisas do tipo, mas isso é normal.”
Edu conta um episódio leve que teve com algumas turmas. “No primeiro semestre, eu ainda não possuía seios. Daí, no segundo semestre, eu coloquei a prótese. O processo foi tão interessante que eles comentaram: ‘Nossa, a senhora turbinou, hein?!’, recapitula Edu, aos risos.
O carinho com os alunos é tanto que Edu foi escolhida como paraninfa de uma turma de terceiro segmento (referente a terceiro ano), que se forma no fim deste ano. Lisonjeada, Edu vai ter a responsabilidade de homenagear os alunos na formatura frente aos convidados deles — cada estudante poderá levar até um parente ou pessoa próxima.
“Eu disse a eles que eles estão quebrando paradigmas. Eles não têm noção de como isso é importante para eles e para mim. Eles poderiam escolher muitos professores queridos, mas elegeram a mim. Vou representá-los com todo carinho.”
Diretoras confirmam: Edu é unanimidade
Edu é amada por onde passa. E quem pode comprovar são as diretoras do CED 01, Cristiane Almeida e Vanessa Bomfim. “O trabalho da Edu faz a diferença no sistema prisional, porque a Edu tem uma história muito forte de luta, de resistência, de coragem. Tudo isso diz para aquele aluno que ele também pode resistir, lutar e vencer. Ter professores com essa história de vida faz muita diferença”, comenta a diretora Cristiane Almeida.
Cristiane trabalha com a educação no sistema prisional desde 2012; Vanessa, desde 2005. Ambas davam aula quando o CED 01 de Brasília ainda não existia, e a educação penitenciária ainda não era institucionalizada. Hoje, elas dirigem juntas o CED 01, administram o ensino nas oito penitenciárias, e dão amparo para os 185 professores que atuam nas unidades.
“Dentro das prisões, há dois pilares de humanização das pessoas privadas de liberdade: a visita e a escola. A função da escola dentro do sistema prisional é fazer com que o custodiado seja resguardado como sujeito de direito”, conta a vice-diretora Vanessa Bomfim.
Agora, elas lutam para que o CED 01 seja tomado por uma gestão democrática. “Talvez esse seja o maior desafio hoje, fazer com que os alunos participem dos processos decisórios da escola, que a escola tenha realmente autonomia pedagógica, administrativa e financeira.
“Você é um presente para a gente”
Cristiane relembra o momento em que a Edu chegou no CED 01, no início deste ano. “A gente não a conhecia, e a primeira coisa que a gente sentiu foi preocupação. ‘Meu Deus, e agora, como ela será recebida?’, a gente se perguntava. A gente trabalha num lugar onde o preconceito é muito grande. Mas, para a nossa alegria, os alunos simplesmente amaram a Edu, graças ao compromisso, responsabilidade, zelo e carinho dela. Isso silenciou o preconceito.”
“Outro dia eu disse para a Edu: “Você é um presente para a gente”.
“Quando a Edu chegou, ficamos tensos. Porque a gente também não tem preparo — isso é importante dizer, né — para acolher a Edu como ela merece ser acolhida. Mas com elegância, com tranquilidade, com amorosidade, a Edu tem transcorrido dentro do sistema prisional de uma forma que eu fico encantada”, comenta Vanessa.
Invisibilização
Questionada se há um levantamento de quantas professoras trans atuam no Sistema Penitenciário do DF, a Secretaria de Educação informou que não há opção disponível para pesquisa com essa qualificação no sistema oficial de pessoas do GDF e que solicitou à Secretaria de Economia a abertura de um campo específico.
O Ministério da Educação (MEC) afirmou que não possui um monitoramento que indique quantos professores trans existem na rede pública dos estados brasileiros e do DF.
O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) informou não haver “quesito específico para coleta desse dado” nas pesquisas estatísticas do órgão.
Apaixonada por ensinar, Edu continua estudando para passar cada vez mais conhecimento para mais e mais pessoas. “Estou fazendo o meu segundo mestrado, em políticas públicas para crianças e adolescentes, na UnB. Quero dar oportunidade para que a criança e o adolescente trans possam existir. Eu fui uma criança trans, uma adolescente trans, e a educação, por todas as vezes, me invisibilizou, me anulou. Muitas de nós acabam não tendo a formação adequada.”