Dizem que Le Corbusier, o arquiteto do modernismo, certo dia de verão em Paris saiu para uma caminhada ao pôr-do-sol, quando se assustou com o caos do trânsito. “…foi como se o mundo tivesse subitamente enlouquecido…”. Era 1924, os carros já dominavam as avenidas das grandes cidades e aquilo perturbou o franco-suíço. Foi então que ele começou a pensar em proteger o pedestre do confronto com a máquina e liberar os carros para a potência máxima. E assim criou vias exclusivas para as rodas e acabou com a rua tal qual a conhecemos. Quem conta essa história é Marshall Berman, em Tudo o que é sólido desmancha no ar (Companhia das Letras, página 160).
A coisa foi levada tão a sério em Brasília que lá se foi a rua bordejada de casas e serviços em geral, tudo misturado e alinhado em calçadas cheias de gente. A sorte é que as cidades costumam ser desobedientes e as ruas acabaram ressurgindo de um jeito meio desajeitado, o que é próprio das ruas, com o que de melhor elas têm: o vaivém dos pedestres, a mistura de gentes, a floresta humana batendo perna. Toda cidade-satélite de Brasília tem pelo menos uma rua ao modo convencional e geralmente é a rua ou avenida do comércio.
A rua perto de onde moro há mais de 15 anos é um acontecimento contínuo: distribuidora de bebida colada na igreja evangélica colada na farmácia. Padaria, mercadinho, papelaria, barbeiro, boteco, brechó de móveis, lojinhas de roupa, de açaí, jantinha, cachorro-quente, pizzaria, salão de beleza, esmalteria – não tem pet shop ainda. E no meio disso tudo o discretíssimo porém indisfarçável jogo do bicho.
É muito estreita a rua perto de casa e nem nome tem porque a rigor nem rua é. São quadras perfiladas uma ao lado da outra e cortadas por um asfalto remendado por onde passam carros, caminhões, carroças, motos, bikes – e pedestres.
O dia começa muito cedo na rua perto de casa. Antes das seis já tem gente subindo em direção ao ponto de ônibus. Por volta da sete, magotes de adolescentes passam a caminho da escola pública. Os cabelos! Como são estilosos! O corte escultural dos meninos e as tranças nas meninas. Uma gramática de cores, cachos, amarrações, grafismos – um desfile de identidades adolescentes se constituindo.
As moradias ficam no primeiro e no segundo andar da rua perto de casa. De uma delas, de vez em quando ouço uma voz feminina se queixando em voz alta. Só consigo ver os braços eloquentes. A moradora parece falar ao vento, ao dia, ao Sol, a nenhuma pessoa específica.
O moço da barbearia trabalha todos os dias, de segunda a segunda. Cedinho, limpa o pequeno salão espelhado como se fosse a sala de sua casa. Um vidrinho com sal grosso está sempre ali, bem na entrada. O moço da casa de bolo joga um copo d’água no vaso de plantas que enfeita a porta do estabelecimento.
A rua perto de casa tem pedestres empurrando a própria morada – os que vivem na rua com seus carinhos de supermercado. Eles costumam se juntar numa esquina, bem cedinho, pra conversar num banco formado pelo desnível da calçada com o asfalto. Morador de rua adora contar vantagem – toda a gente humana gosta muito de enumerar suas conquistas reais ou imaginárias, mas entre os moradores é um hábito contumaz.
Criam histórias que são elas mesmas o corpo de cada um deles. São aventuras mirabolantes, nas quais o contador da história é o herói ou alguém que conviveu com um herói, um poderoso de quem foi amigo ou, no mínimo, merecedor de atenção.
No meio da rua, sem parede nem teto, é preciso construir uma casa imaginária, feita de sonhos, invenções, delírios, histórias contatadas pra si mesmo e para o outro. É preciso sempre inventar um sentido, é o que nos iguala, os que têm e os que não têm um teto onde se abrigar.
Nenhuma cidade deveria existir sem ruas, assim como ninguém pode existir sem contar a si mesmo a própria história. Mesmo que no íntimo de cada um haja segredos incontáveis, e é importante que haja, a rua é um livro aberto de vidas sendo cotidianamente contadas.
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